Irmã Cecília da Bélgica para o Brasil
Em 60 anos de vida religiosa consagrada, a irmã Cecília sempre se manteve inabalável na fé e firme no propósito de trabalhar em regiões empobrecidas. Ela atuou em comunidades na Bélgica, na Holanda e na Alemanha até ser enviada para o Brasil em 1969, onde pode finalmente exercer a sua verdadeira vocação.

A irmã Cecília Hansen é uma sobrevivente da guerra. Ela nasceu no dia 11 de março 1939, em Born, na Bélgica, apenas cinco meses antes do início da Segunda Guerra Mundial e viu de perto todos os horrores cometidos. Ela vem de uma família e que a fé em Deus ajudou a superar os tempos de ódio. “Minha mãe tinha uma fé profunda e confiava na presença de Deus na vida dela, mas não era uma beata. Toda a noite ela rezava perto da cama de cada um dos 10 filhos para que os anjinhos nos acompanhassem”, lembra.
O primeiro chamado para seguir Jesus aconteceu quando a irmã Cecília tinha entre 14 e 15 anos. Ela queria se dedicar totalmente ao Senhor, mas não conseguiu se encaixar em nenhuma congregação. “As franciscanas me puxaram, mas não gostei muito delas porque andavam de casa em casa pedindo esmolas. Depois fui visitar as carmelitas e não toquei nem a campainha. Vi a casa e tudo em volta era morto”, recorda. Pouco tempo depois, ela foi visitar a sua irmã mais velha, que faz parte da Congregação Missionária Servas do Espírito Santo (SSpS), na cidade de Steyl, na Holanda. “As irmãs me respeitaram muito e percebi que podia ampliar minha visão. Eu sempre tive vontade de conhecer o mundo e soube que era ali que eu queria servir”, enfatiza.
A notícia foi recebida com entusiasmo pela família e, especialmente a sua mãe ficou muito feliz por ter duas filhas religiosas. “Meu pai não foi contra, mas disse que eu não poderia passar a vida ao lado da minha irmã. Eu estava muito ligada a ela, que era muito carinhosa e meiga”, comenta. A vontade de servir era tão grande que, aos 18 anos, a irmã Cecília queria entrar para o convento, mas foi proibida pela mãe que a achava muito jovem. Aos 20 anos, ela se sentiu chamada de novo e em setembro de 1959 ingressou no aspirantado em Steyl.
Tempo de união e saudade
Dos primeiros tempos no convento, o que ficou marcado na memória da irmã Cecília são as regras rígidas e a imensa saudade da família. “Quando era noviça tinha muita saudade da minha família, sobretudo das sobrinhas e sobrinhos, mas mesmo assim eu fiquei” conta. O aprendizado intenso e a união entre as noviças também fazem parte das lembranças. “Nós éramos 23 irmãs e ficamos muito unidas, uma ajudando a outra. Depois de apenas três meses uma delas faleceu e nós ficamos mais unidas ainda”, frisa. Ela garante que, apesar das provações, nunca duvidou do seu chamado e nem mesmo chegou a pensar em outra profissão. “Gosto muito de astronomia, de observar o céu e as estrelas, e até hoje leio muito sobre isto, mas nunca cheguei a considerar seriamente seguir outro caminho”, complementa.
Concílio Vaticano II transformou a vida missionária
Enquanto a Irmã Cecília fazia a sua formação em Steyl, a Igreja Católica realizava o Concílio Vaticano II. “Ele trouxe novos ventos. Era um tempo de mudanças”, resume. Dois pontos do Concílio tiveram muita influência no trabalho missionário: a igreja passou a ser vista como o povo escolhido do Senhor e o Vaticano II devolveu a Bíblia ao povo, permitindo que todos os cristãos se inspirassem na Palavra de Deus. “Se a igreja é o povo de Deus, então todas as suas estruturas também deveriam se modificar”, reflete. A estrutura piramidal da Igreja foi transformada em circular, onde todos tinham voz e vez. “Todos estavam sentados em uma roda e tomavam as decisões, valorizando sempre o trabalho da mulher na igreja, na sociedade e na igualdade”, explica. A SSpS formou Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e promoveu muitas reflexões e cursos bíblicos com essa mesma metodologia. “Essa mentalidade perpassava todos os trabalhos das comunidades. Quando um grupo precisava de um reforço, todas as pessoas de outros grupos ajudavam. Aquela época se falava em trabalho de conjunto, hoje nós diríamos parcerias”, enfatiza.
Primeiros contatos com a cultura brasileira
Irmã Cecília proferiu os primeiros votos em 08 de junho de 1962 no convento de Steyl, onde estudou por quatro anos e depois de dois anos na cidade de Wimbern, na Alemanha, foi chamada para o Brasil. Por ser belga, ela não conseguiu o visto de entrada para o Brasil, que na época vivia uma Ditadura Militar. A alternativa foi tentar o visto através da Holanda e, após um ano de espera, a religiosa pisou no chão brasileiro em setembro de 1969 como imigrante holandesa. Ao chegar no convento Santíssima Trindade, em São Paulo, a irmã Cecília teve que se adaptar aos novos hábitos e à nova cultura. “Logo comecei a estudar a língua portuguesa com uma professora de línguas e uma noviça. Como no refeitório das irmãs ainda se falava ainda muito alemão e eu queria aprender mais o português, passava a maior parte do tempo com as noviças”, recorda.
Ela comenta que aprendeu rápido a nova língua e o costume que mais estranhou foi a rapidez com que os mortos eram enterrados. “No começo do meu trabalho em Vila Remo, eu morava no convento e ia trabalhar bem cedo. Uma vez uma irmã faleceu depois que eu fui trabalhar e à noite ela já foi enterrada. Eu fiquei chocada e me perguntando se ela estava mesmo morta”, diz. “Outra coisa que eu demorei para me acostumar foi com o café. Eu não tomava café e até eu aceitar, demorou”, brinca.
Onde a fome entra sem pedir licença
Como sonhava em trabalhar com a população carente, logo que aprendeu a língua e um pouco da cultura brasileira, a irmã Cecília iniciou um trabalho missionário, na Paróquia Santo Cristo, no Rio de Janeiro. “A paróquia ficava perto do porto e de uma grande favela, mas os padres tinham ainda o estilo antigo e trabalhavam mais com a classe média. Não gostei disso e voltei para São Paulo”, diz. Na mesma época, o bispo Dom Paulo Evaristo Arns fez um apelo a todas as congregações para liberar e enviar religiosos para as periferias, que estavam abandonadas pelo Estado e pela igreja. Ela foi convidada para conhecer a realidade da extrema periferia em Vila Remo, na região sul de São Paulo, e permaneceu lá por 17 anos.
Com essa vivência, a imagem de Deus se transformou para a irmã Cecília. “De um Deus distante, experimentei um Deus presente em nossas vidas e que caminha conosco. Um Deus vivo, libertador, cheio de misericórdia e amor pela sua criação”, define. Ela conta que, em 1989, participou de uma ocupação na periferia de Goiânia, onde morou num barraco de lona. “Acompanhamos o ritmo do povo e podia sentir na própria pele o que o povo pobre está obrigado a viver”, lembra. A religiosa permaneceu ali por só alguns meses, pois seu destino final era o Maranhão. Na cidade de São Luiz, ela participou de outra ocupação, desta vez formada por descendentes de africanos e indígenas. “A cultura original estava ainda muito presente e a pobreza era grande. Um dia uma mulher disse que a fome entrava naquelas casas sem pedir licença”, recorda com tristeza.
Rotina de orações e visitas à periferia
Atualmente, a irmã Cecília vive no Convento Santíssima Trindade e ainda exerce a sua vocação religiosa. “Aqui ajudo lavar louça, escrevo os cartões de aniversário para as irmãs e funcionárias do Sant'Ana, gosto de ajudar as irmãs quando precisam, faço visitas na periferia, cultivo a leitura, participo da missa diariamente e de uma equipe de liturgia”, enumera. Ela também integra um grupo de reflexão em Embu-Guaçu, em São Paulo, onde confraterniza com pessoas de todas as idades, muitas vezes famílias. "Sempre tem um momento de espiritualidade” frisa.
Onde todos tenham vida e vida em abundância
De acordo com a irmã Cecília, o símbolo da sua vida missionária é uma pedra rústica. “Muitas vezes ela é jogada fora ou ignorada por quem passa, mas quando a gente abre a pedra encontra uma grande riqueza”, explica. “Assim é com o povo empobrecido. É preciso entrar na alma para descobrir a beleza maravilhosa e o brilho inimaginável. A vida do povo pulsa no meu sangue”, salienta. Ela enfatiza ainda que descobriu na vida missionária o valor e a riqueza do povo pobre e mantém viva a esperança de um mundo mais igual.
